sexta-feira, 26 de junho de 2009

A mosca da PUC

Vicente Rao
Esqueça Kafka, aquele chato que se sentia uma barata.
Acompanhe meus dissabores na cozinha da PUC.
Quem sou eu?
Uma mosca.

Eram quase sete horas da noite. Eu não esperava que eles voltassem antes do jantar. Estava na mesa da cozinha recolhendo migalhas de pão quando a luz acendeu.

O clarão insuportável me cegou por uns instantes. Logo reconheci a voz de uma mulher berrando "tá cheio de moscas"!

Meu coração disparou. Voei para o teto. Me agarrei num cano. Tentei me esconder, mas a mulher já tinha me visto.

Eu conheço ela. É do tipo obsessivo. Não pode nos ver que tem um ataque de nervos. Ontem, ela matou alguns dos meus irmãos. Preciso ficar longe enquanto ela estiver com aquele spray na mão.

Não tenho medo dela. Temo é morrer sem completar minha missão de contatar com os humanos.

Sei lá porque escolhi este destino. Minha companheira quer que eu desista. Todos os dias me convida para ir morar no lixão da Ipiranga.

Mas eu não me entrego. Vou voar pelo campus todos os dias até cumprir minha missão. Sobrevivo como posso. Fico sempre alerta quando sinto o cheiro do veneno no ar - nenhuma de nós pode voar mais rápido do que um jato de spray.

Já vi muitas morrerem assim. A agonia dura segundos, o que é uma eternidade no nosso tempo de vida. Minha mãe morreu de um toalhaço. Se eu tivesse que escolher, preferiria mil vezes o toalhaço. É rápido, provavelmente indolor. Ou morrer de tapa, como aquele do Obama na Leslie (sim, era uma enviada nossa que tentava se comunicar com o homem mais poderoso da Terra).

Eu estava contando que estava na cozinha ? A velha saiu, ufa. Um garçon abriu a geladeira para tomar uma Coca. Pousei na porta, esperando uma chance de entrar, pegar alguma coisa, saltar fora. As pessoas sempre deixam a porta aberta por vários minutos, anos na minha vida. Voei rápido pra cima de uma feijoada - brrrr, odeio quando está fria.

Depois da janta, voei pra biblioteca. Faz tempo que estou esperando uma chance de usar o computador para minha missão de me comunicar com os humanos.

Se nós entendemos de computação? Claro que sim.

A sabedoria foi acumulada por milhões de moscas no mundo inteiro. Elas pousam nos videos ou em livros abertos para entender do assunto. A maioria morreu na tentativa, mas, finalmente, um texto foi produzido - o manual está em centenas de microbibliotecas pelo mundo todo.

Raciocine: com as telas dos computadores sensíveis ao toque de um dedo humano, não estamos muito perto de conseguir nos comunicar com os donos dos dedos, apenas pousando nas teclas dos computadores deles?

Acho que quando a primeira mosca conseguir vencer esta barreira, os humanos poderão obter grandes vantagens. Eles vão entender mais de doenças, de microorganismos, de genética. E espero que então parem de nos perseguir. Nós também somos gente (o conceito desta palavra se aplica primeiro a nós, depois aos humanos). Somos até mais inteligentes do que eles, porque nos adaptamos em qualquer lugar.
Nosso problema é a incomunicabilidade.

Os humanos não nos entendem. Nós tentamos de tudo, já falei da valentia da Leslie. Dias atrás li numa revista que uma turma na Holanda resolveu pousar numa mesa, num instituto de pesquisas, formando palavras. Mas, logo foi varrida com spray por um idiota que não se deu ao trabalho de ler a mensagem de paz.

O perigo deste sistema é que cada vez que nos juntamos em grandes bandos, logo vem uma reação violenta. Não admira que muitas de nós nem tentem mais se expressar.

Vejam o que aconteceu em Copenhagem: outro bando de moscas (tontas), bolou uma genial: sujar as patas de tinta, voar em grupos e manchar o papel com palavras. Escreveram "Nós queremos contato com os humanos". E as babacas assinaram "moscas". Depois, pousaram num canto da mesa pra ver a reação - só para morrer de toalhaço.

Tem o filme. A Mosca. Horripilante. Nenhuma de nós consegue crescer tanto. Nossa baba não é tão espessa. Nunca comemos do jeito que eles apresentam no filme . Nossa vida é mais curta. Eu nasci ontem, fiquei sabendo de todas estas coisas em meia hora, sei que minha vida vai acabar amanhã. Não daria para fazer um longa metragem.

Eu disse que tava na bibliotek?

Hoje, dei sorte. Encontrei o computador ligado. Estou na tela, escrevendo este texto. Toco com as patas, as letras vão saindo direitinho. Espero que vocês acreditem que foi uma mosca quem conseguiu esta proeza!

Quero bater a barata do Kafka. A coitada conseguiu escrever seu livro, mas depois da obra pronta, disseram que foi ele. Bobagem. Creio que seja da barata mesmo. Nós moscas pensamos, existimos, lutamos, morremos. As baratas também devem ser assim, iguais aos humanos, mas noutra esfera.

Ih, lá vem o zelador desligar o computador.

Que sorte, pousei no SALVAR COMO!

Você me lê, então minha obra está pronta.

Fiz o que podia.

Vou voar para a cozinha.

Porto Alegre, campus da PUC, 18 de junho de 2009
(ano 5.456.767 do calendário mosquico)

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