sexta-feira, 26 de junho de 2009

Catador fora-da-lei

Felipe Baierle

São onze horas da manhã de uma quarta-feira chuvosa e estou na entrada da Vila Chocolatão. Rodeado de prédios luxuosos, o amontoado de maloquinhas é por si só um milagre.

Há muito tempo se fala na remoção dos moradores da vila para que se desocupe o terreno pertencente a União. A sorte das pessoas dali é que nunca conseguiram transferi-los. Porque se conseguissem, os catadores não poderiam trabalhar, pois estariam longe do lixo do centro, nem os traficantes, que por sua vez não teriam playboys querendo drogas, nem as faxineiras ou pequenos batedores de carteira, nem os guardadores de carro, que não teriam carros para guardar.

Na calçada próxima à entrada da vila tem um; guardador de carro. Devo estar parecendo meio ridículo parado, debaixo dessa chuva, porque o cara ta me olhando com uma expressão estranha.

Não sou louco, marquei com o seu Antônio aqui. Estou esperando ele para uma entrevista. Por falar nisso, ele está atrasado. Vou entrar na vila e ver se alguém sabe onde ele mora.

Entrei pela pequena rua de chão batido que fica de frente para o parque Harmonia. Duas crianças brincavam em meio ao barro. Um gurizinho de uns dez anos se divertia jogando um besouro no cabelo de uma menina um pouco mais velha.

Riam muito, não pareciam ser crianças infelizes. E ainda por cima eram muito inteligentes. Logo que pedi me levaram até a casa do seu Antônio, cheguei rapidinho.

“Ô seu Antônio, esqueceu de mim? Estava lhe esperando lá na rua”, disse eu. “Pois é vizinho, pensei que o senhor nem vinha mais com essa chuva. Mas entra, a casa é sua”, me disse um muito educado catador de 32 anos, barba rala e cabelo bem penteado.

A casa do Sr. Antônio fica nos fundos de um terreninho onde estão mais quatro casebres de madeira. Na pequena residência de cinco metros de comprimento por três de largura só haviam três objetos de valor. Um aparelho de DVD, uma TV e um tanquinho branco de lavar roupas.

“Ó Rosa, esse aqui é o moço que eu falei. Ele veio aqui pra fazer a entrevista por que querem tirar os carrinhos da gente”, disse Antônio a título de apresentação. Dona Rosa, mulher dele, na verdade se chama Rosimeri Gulart Vieira. Desempregada, Ela também achou sustento na catação de material reciclável: “eu abro o saco (de lixo) e fecho direitinho. Às vezes, o meu marido até me xinga dizendo que ‘não dá tempo de arrumar tudo’. Não, eu tenho que amarrar direitinho”, explicou.

A energia elétrica que alimenta a TV e o chuveiro da casa onde moram Rosa, seu filho e Antônio vem de um gato. Pra quem não sabe, “gato” é uma instalação elétrica ilegal feita no poste sem que o usuário tenha que pagar pela luz. Uma estratégia de sobrevivência fora-da-lei.

Perguntei pra dona Rosa se ela não achava boa a situação, já que provavelmente não teria dinheiro para pagar a luz se lhe fosse cobrada. “Eu não acho que é melhor assim. É melhor tu ter o teu dinheiro e pagar as tuas contas do que...” completou a frase com um gesto de mão que queria dizer afanar, roubar.

Leis e pobres
Rosa e Antônio não sabem direito o que determina a Lei das Carroças. Não tem a real dimensão do que vai significar em suas vidas o “Programa de Redução Gradativa” de veículos de tração humana e animal em Porto Alegre.

Se soubessem que a lei de autoria do vereador Sebastião Melo (PMDB) proíbe a circulação de todo e qualquer veículo de tração humana ou animal em um prazo máximo de oito anos, não dormiriam tranquilos.

Perguntei a dona da casa se ela não acha que as leis são contra a sobrevivência dos pobres. Ela concordou, mas sem desânimo. Disse que “Deus não quer” a morte do povo e transpareceu ser uma pessoa feliz, sem rancores apesar de tudo. Dona Rosa e seu Antônio são desse tipo de gente “que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta”. Aliás, essa música não saiu da minha cabeça durante toda a entrevista.

Adin
A ação direta de inconstitucionalidade movida recentemente pelo Ministério Público a pedido do Movimento Nacional dos Catadores, pode ser a luz no fim do túnel para muitas pessoas como seu Antônio e dona Rosa. Segundo a sub-procuradora para assuntos jurídicos do Ministério Público gaúcho, Ana Maria Schinestsck, “a lei 10.531 atribui uma série de condutas ao município. Entendemos que tem que haver uma regulamentação, mas isso tem que partir do município (poder executivo)”.

Caso ainda assim a Lei das Carroças encontre uma forma de vigorar, os catadores gaúchos não deixarão de trabalhar. Já aparecem pelas ruas pessoas carregando o material reciclável no braço, sem carrinho nem carroça. Mais uma maneira de sobreviver em uma cidade em que até o trabalho parece ser contra a lei.

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