Felipe Baierle
Lá pelas duas e meia da matina, passando em frente a uma revenda de carros na esquina da João Pessoa com a Ipiranga, o alarme: “vem vindo um carro da polícia. Rápido, joga fora!”.
Ao contrário dos últimos tempos, naquela madrugada não estava frio. Acho que fazia uns 15°.
As ruas vazias pareciam não pertencer à mesma cidade que durante o dia se exibe barulhenta e movimentada. Não havia cheiro de fumaça nem barulho de busina.
Só não se podia chamar de “uma madrugada tranqüila” porque a cada momento passava um táxi perigosamente devagar, como se soubesse o que o grupo fazia.
– Os taxistas têm um convênio de cooperação anti-pichação com a prefeitura. Qualquer coisa que eles veem, automaticamente eles já ligam pro disk-pichação. Então, uma das orientações mais importantes de segurança é fugir dos taxistas – advertiu alguém que vou chamar de “companheiro”.
Enquanto falava, o cara de vinte e poucos anos, olhar seguro e barba ao estilo Che Guevara ia terminando um estêncil que seria colocado nas paredes da capital. Pra quem não sabe, estêncil é um molde que serve para pichar rapidamente uma figura em um muro, camisa ou outras superfícies.
Em Porto Alegre, podem ser observados vários estênceis, cartazes e grafites feitos pelo mesmo grupo a que me refiro nessa reportagem. Foram eles que colocaram nas ruas as reivindicações que dizem “pixe y lute!”, “somos todos sem terra”, “o latifúndio esgota nossa água”, “agro-negócio, cultura da fome”, “torturador” e também o polêmico mural em uma parede da UFRGS “pra que(m) serve o teu conhecimento?”.
– A nossa prática de agitação e propaganda é sempre estar passando uma mensagem que não aparece na mídia corporativa. E a maneira mais efetiva de a gente estar fazendo isso continua sendo as ruas – explicou o “companheiro”.
E, para que eu entendesse melhor o que os move, o “companheiro” contou ainda uma história sobre o escritor Eduardo Galeano.
– O Galeano mesmo disse numa entrevista, quando perguntaram pra ele se ele lia muito: ‘sim, mas não livros, leio mais paredes’. Inclusive, ele comentou que certa vez leu numa parede uma coisa que achou muito bonita. Dizia assim: ‘mijam em nós e os jornais dizem que é chuva’.
Pensando nisso, perguntei para um baixinho muito simpático, por que valia a pena se arriscar para colocar aquele material nas ruas.
– Porque acreditamos num projeto de transformação social. E também por que é a partir dessas práticas de ação direta que a gente vai conseguir demonstrar que o sistema que está colocado não está resolvendo problema socioeconômico algum - contou.
Havia 18 pessoas na casa que serviu de quartel general pro grupo. Entre meia noite e duas horas da manhã, a tarefa deles era terminar os estenceis que seriam usados na ação da madrugada.
Pelas ruas
Pouco antes das duas horas, o trabalho de conclusão das chapas estava terminado. Faltava botar o material nas ruas.
Divididos em pequenos grupos de três a quatro pessoas, as rotas seguidas foram pela Osvaldo Aranha, João Pessoa (o grupo ao qual segui como observador), Centro e Cidade Baixa. Logo de saída, a moça e os dois cabeludos que eu seguia decidiram fazer um estêncil em uma parede próxima ao “Bar do Antônio”, na João Pessoa.
“A saída pra crise é a luta do povo”, estava escrito no material que segundo eles, era uma maneira de alertar que a crise dos pobres não acabou, ao contrário do que dizem nos jornais. Para chegar até essa frase, o Coletivo se reuniu e discutiu a crise econômica mundial. A conclusão alcançada por eles é que a verdadeira crise não acabou, pois essa é a crise do povo. Acrise de pais e mães que não tem como alimentar seus filhos.
Perigo
Mas como eu dizia, eles estavam pichando. Com a lata de spray vermelho pintaram a primeira parte, que eram bonequinhos com os punhos cerrados. O trabalho foi interrompido no meio pelo medo de um táxi que passava vagarosamente pela João. Se foi. Era hora de pichar a outra parte do material, essa com spray preto.
Ao todo, eles levaram exatamente 54 intermináveis segundos para terminar o picho. Intermináveis porque eu estava com medo de ir em cana junto com o grupo se eles fossem pegos. Afinal, quem acreditaria na minha história (verdadeira) de que eu era um repórter e não estava pichando nada?
Sem falar que pichação é crime inafiançável, com detenção de três meses a um ano e multa. Quem for pego vai direto pro xilindró.
Com o tempo, a velocidade em fazer os estenceis foi aumentando. A moça ficava com os sprays e os outros dois rapazes cabeludos, cada um com um molde. Ás vezes, eles trocavam de funções.
Susto
Na esquina com a Ipiranga, em frente a uma revenda de automóveis veio um dos momentos mais nervosos. Um dos rapazes olhou pra trás e disse “vem vindo um carro da polícia. Rápido, joga fora!”. Ficaram atarantados, sem saber onde esconder os moldes. Se fossem pegos, os materiais serviriam como prova para o flagrante e aí nem um bom advogado resolveria. Um estêncil foi parar dentro de uma dessas latas de lixo laranjas que tem por todo o centro e outro perto da vitrine da revenda, no chão. O som do carro em aproximação fez todos andarem em silêncio, morrendo de medo.
Quando o carro passou pelo grupo, ficou evidenciado o alarme falso. Era um desses veículos com espaço para bagagem sobre o teto. As hastes de metal foram confundidas com sirenes apagadas, como a Brigada costuma andar para surpreender possíveis criminosos.
Passando o Palácio da Polícia e a revenda de carros de luxo, os três pichadores seguiram ainda pela João Pessoa. Por onde estiveram, ficou um rastro de coragem e consciência pichado em tinta vermelha e preta.
Breve história do picho
Antiguidade
Registros revelam que a pichação já era praticada na antiguidade em grandes cidades como Pompéia. Ainda hoje, pesquisadores usam esses registros para estudar a rotina e costumes dessas sociedades antigas.
Anos 60, 70 e 80
Na Europa, a pichação nasceu como forma de protesto de pessoas que não estavam de acordo com as injustiças sociais da época. Muito utilizada por anarquistas e comunistas, a pichação ocupou espaços urbanos antes abandonados como ruas e prédios.
Ditadura brasileira
Durante o regime militar iniciado em 1964, a pichação deu seus primeiros passos por aqui.
Com a liberdade de expressão e direitos democráticos suprimidos, uma das únicas formas de protestar era o “abaixo a ditadura” pichado quase sempre por adolescentes do movimento estudantil em muros e ruas.
Lá pelas duas e meia da matina, passando em frente a uma revenda de carros na esquina da João Pessoa com a Ipiranga, o alarme: “vem vindo um carro da polícia. Rápido, joga fora!”.
Ao contrário dos últimos tempos, naquela madrugada não estava frio. Acho que fazia uns 15°.
As ruas vazias pareciam não pertencer à mesma cidade que durante o dia se exibe barulhenta e movimentada. Não havia cheiro de fumaça nem barulho de busina.
Só não se podia chamar de “uma madrugada tranqüila” porque a cada momento passava um táxi perigosamente devagar, como se soubesse o que o grupo fazia.
– Os taxistas têm um convênio de cooperação anti-pichação com a prefeitura. Qualquer coisa que eles veem, automaticamente eles já ligam pro disk-pichação. Então, uma das orientações mais importantes de segurança é fugir dos taxistas – advertiu alguém que vou chamar de “companheiro”.
Enquanto falava, o cara de vinte e poucos anos, olhar seguro e barba ao estilo Che Guevara ia terminando um estêncil que seria colocado nas paredes da capital. Pra quem não sabe, estêncil é um molde que serve para pichar rapidamente uma figura em um muro, camisa ou outras superfícies.
Em Porto Alegre, podem ser observados vários estênceis, cartazes e grafites feitos pelo mesmo grupo a que me refiro nessa reportagem. Foram eles que colocaram nas ruas as reivindicações que dizem “pixe y lute!”, “somos todos sem terra”, “o latifúndio esgota nossa água”, “agro-negócio, cultura da fome”, “torturador” e também o polêmico mural em uma parede da UFRGS “pra que(m) serve o teu conhecimento?”.
– A nossa prática de agitação e propaganda é sempre estar passando uma mensagem que não aparece na mídia corporativa. E a maneira mais efetiva de a gente estar fazendo isso continua sendo as ruas – explicou o “companheiro”.
E, para que eu entendesse melhor o que os move, o “companheiro” contou ainda uma história sobre o escritor Eduardo Galeano.
– O Galeano mesmo disse numa entrevista, quando perguntaram pra ele se ele lia muito: ‘sim, mas não livros, leio mais paredes’. Inclusive, ele comentou que certa vez leu numa parede uma coisa que achou muito bonita. Dizia assim: ‘mijam em nós e os jornais dizem que é chuva’.
Pensando nisso, perguntei para um baixinho muito simpático, por que valia a pena se arriscar para colocar aquele material nas ruas.
– Porque acreditamos num projeto de transformação social. E também por que é a partir dessas práticas de ação direta que a gente vai conseguir demonstrar que o sistema que está colocado não está resolvendo problema socioeconômico algum - contou.
Havia 18 pessoas na casa que serviu de quartel general pro grupo. Entre meia noite e duas horas da manhã, a tarefa deles era terminar os estenceis que seriam usados na ação da madrugada.
Pelas ruas
Pouco antes das duas horas, o trabalho de conclusão das chapas estava terminado. Faltava botar o material nas ruas.
Divididos em pequenos grupos de três a quatro pessoas, as rotas seguidas foram pela Osvaldo Aranha, João Pessoa (o grupo ao qual segui como observador), Centro e Cidade Baixa. Logo de saída, a moça e os dois cabeludos que eu seguia decidiram fazer um estêncil em uma parede próxima ao “Bar do Antônio”, na João Pessoa.
“A saída pra crise é a luta do povo”, estava escrito no material que segundo eles, era uma maneira de alertar que a crise dos pobres não acabou, ao contrário do que dizem nos jornais. Para chegar até essa frase, o Coletivo se reuniu e discutiu a crise econômica mundial. A conclusão alcançada por eles é que a verdadeira crise não acabou, pois essa é a crise do povo. Acrise de pais e mães que não tem como alimentar seus filhos.
Perigo
Mas como eu dizia, eles estavam pichando. Com a lata de spray vermelho pintaram a primeira parte, que eram bonequinhos com os punhos cerrados. O trabalho foi interrompido no meio pelo medo de um táxi que passava vagarosamente pela João. Se foi. Era hora de pichar a outra parte do material, essa com spray preto.
Ao todo, eles levaram exatamente 54 intermináveis segundos para terminar o picho. Intermináveis porque eu estava com medo de ir em cana junto com o grupo se eles fossem pegos. Afinal, quem acreditaria na minha história (verdadeira) de que eu era um repórter e não estava pichando nada?
Sem falar que pichação é crime inafiançável, com detenção de três meses a um ano e multa. Quem for pego vai direto pro xilindró.
Com o tempo, a velocidade em fazer os estenceis foi aumentando. A moça ficava com os sprays e os outros dois rapazes cabeludos, cada um com um molde. Ás vezes, eles trocavam de funções.
Susto
Na esquina com a Ipiranga, em frente a uma revenda de automóveis veio um dos momentos mais nervosos. Um dos rapazes olhou pra trás e disse “vem vindo um carro da polícia. Rápido, joga fora!”. Ficaram atarantados, sem saber onde esconder os moldes. Se fossem pegos, os materiais serviriam como prova para o flagrante e aí nem um bom advogado resolveria. Um estêncil foi parar dentro de uma dessas latas de lixo laranjas que tem por todo o centro e outro perto da vitrine da revenda, no chão. O som do carro em aproximação fez todos andarem em silêncio, morrendo de medo.
Quando o carro passou pelo grupo, ficou evidenciado o alarme falso. Era um desses veículos com espaço para bagagem sobre o teto. As hastes de metal foram confundidas com sirenes apagadas, como a Brigada costuma andar para surpreender possíveis criminosos.
Passando o Palácio da Polícia e a revenda de carros de luxo, os três pichadores seguiram ainda pela João Pessoa. Por onde estiveram, ficou um rastro de coragem e consciência pichado em tinta vermelha e preta.
Breve história do picho
Antiguidade
Registros revelam que a pichação já era praticada na antiguidade em grandes cidades como Pompéia. Ainda hoje, pesquisadores usam esses registros para estudar a rotina e costumes dessas sociedades antigas.
Anos 60, 70 e 80
Na Europa, a pichação nasceu como forma de protesto de pessoas que não estavam de acordo com as injustiças sociais da época. Muito utilizada por anarquistas e comunistas, a pichação ocupou espaços urbanos antes abandonados como ruas e prédios.
Ditadura brasileira
Durante o regime militar iniciado em 1964, a pichação deu seus primeiros passos por aqui.
Com a liberdade de expressão e direitos democráticos suprimidos, uma das únicas formas de protestar era o “abaixo a ditadura” pichado quase sempre por adolescentes do movimento estudantil em muros e ruas.
2 comentários:
Ocorreu alguns erros nas informações citadas acima em relação as campanhas de rua feitas por este grupo, que iniciou depois, "chupando" coisas de outro grupo. É necessário uma reparação nesta reportagem. Daniela
Cara Daniela, obrigado por informar a necessidade de reparação. Vamos conversar pra ver o que precisa ser feito e então alteramos o conteúdo sem problemas. Não sei como entrar em contato contigo, então aguardo seu contato.
Abraços
oparcial@gmail.com
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