sexta-feira, 26 de junho de 2009

Uma garrafa é muito, uma caminhão é pouco

Carolina Soares Marquis
Um portão pequeno de ferro pintado de preto e uma porta discreta. Ao atravessar a porta se vê desenhos que, se vítimas de um olhar distraído, poderiam ser confundidos com rabiscos infantis. Não o eram. Pinóquio fumando, dragão fumando, chaminé fumando, esqueleto-quase-apagado-pelo-tempo fumando. A maioria dos desenhos daquela ex-parede branca e atual parede suja fumavam. Exceto por um arco-íris em que mais da metade das cores faltavam e uma pergunta instigante questionava incessantemente: “quem sou eu?”.

Essa pergunta não é difícil de ser descoberta depois que se dão alguns passos e chega-se a uma sala com bancos longos e de madeira vulgar, muitas placas, fichas coloridas, cartazes, imagens de santos pendurados nas paredes e um aviso luminoso que não parava de piscar e lembrar aos desavisado: “EVITE O 1º TRAGO. DE 24 EM 24 HORAS”.

AA – Alcoólicos Anônimos.
No AA todos se chamam de “companheiro(a)” porque verdadeiramente o são. Foram companheiros na bebida e agora são de recuperação no programa de 12 passos.

1. Admitimos que éramos impotentes perante o álcool - que tínhamos perdido o domínio sobre nossas vidas.
2. Viemos a acreditar que um Poder superior a nós mesmos poderia devolver-nos à sanidade.

Companheira Sandra II

Mulher de cabelos pretos e bem cuidados cortados à altura dos ombros. Por sua figura poderia perfeitamente ser a vendedora de uma loja de roupas infantis, ou a orientadora pedagógica de um colégio de classe média, mas não o é. É uma alcoólatra em recuperação como a maioria das pessoas que está naquela sala de janelas de banheiro.

Sandra diz estar há 24 dias sem beber e isso é, para ela, a maior vitória já alcançada. Essa mulher de quarenta e poucos anos começou a beber em 1999, no mesmo período que entrou em profunda depressão. Desde então ela se embriagava quase que diariamente. Decepcionou filhos e familiares, perdeu o emprego que tinha de secretária de um ginecologista e chegou ao que eles chamam de “fundo do poço”.

3. Decidimos entregar nossa vontade e nossa vida aos cuidados de Deus, na forma em que O concebíamos.
4. Fizemos minucioso e destemido inventário moral de nós mesmos.

Companheiro Sílvio VIII

Camiseta da banda Kiss. Cabelos compridos e revoltos presos por um elástico amarelo de amarrar o dinheiro que ele não tem. Calça preta. All Star preto. Pele maltratada cravada por algumas espinhas. Alcoólatra.

O companheiro VIII diz ter se mantido bêbado por 30 anos. Estava há dois sóbrio até o dia 18 de maio.

“Pra mim a bebida é fogo. O álcool é um conforto que eu nunca encontrei igual. Dia 18 não suportei: acordei, tomei três doses de uísque, almocei e dormi. Agora é levantar, sacudir a poeira e seguir em frente.”
Todos na sala enxergam o Sílvio que há dentro de cada um deles. O Sílvio que não agüenta e se rende ao vício, o Sílvio que simplesmente não pensa na manhã seguinte e nesta se entrega a uma dose de uísque.

Uma senhora magrinha de cabelos brancos sentada na última fila se levanta e vai ao encontro do gigante vestido de Kiss e lhe dá um abraço incrivelmente puro.

5. Admitimos perante Deus, perante nós mesmos e perante outro ser humano, a natureza exata de nossas falhas.
6. Prontificamo-nos inteiramente a deixar que Deus removesse todos esses defeitos de caráter.

Companheiro Jairo G.
“Eu já fui internado quarto vezes, já fui batuqueiro e já fui evangélico. Só no AA eu encontrei a cura. E eu nem entrei aqui pra me curar: entrei aqui pra mostrar pra minha família que eu tinha tentado de tudo e nada tinha funcionado. Entrei aqui para pararem de me encher o saco. E não é que funcionou?”

Assim Jairo inicia seu depoimento. As palavras duras não combinam com seu jeito descontraído e brincalhão. A maneira como as profere, faz com que elas percam parte do peso e ganhem leveza.
O companheiro diz ter mentido tanto na vida que hoje em dia, ao tentar se lembrar de alguma história do passado, ele não sabe dizer ao certo qual parte é verdadeira e qual é inventada. Ele mentia para conseguir dinheiro, mentia para justificar suas ausências, para ganhar tempo, para ouvir palavras de conforto, mentia porque sim e porque não.

Quando Jairo fala isso, muitas pessoas que o escutam e esperam sua vez de falar baixam a cabeça e, provavelmente, vêem nele sua imagem e semelhança. A mentira é um ponto comum entre os companheiros de AA. A mentira é um sintoma da doença que todos naquela sala compartilham.

7. Humildemente rogamos a Ele que nos livrasse de nossas imperfeições
8. Fizemos uma relação de todas as pessoas que tínhamos prejudicado e nos dispusemos a reparar os danos a elas causados.

Companheiro Osvaldo II

“Hoje eu não bebi e tá bom. Tá muito bom. Hoje. Tá ótimo. Tô levando. Graças a Deus.” Segundo relatos, é dessa forma que começa o depoimento do companheiro Osvaldo há 15 anos, que é também o tempo que ele está sem beber.

“Fundamentalmente eu venho às reuniões pra lembrar que eu sou doente. Sem vir aqui não funciona, não dá certo. Porque eu não sei dar uma banda: eu sei é ir pro boteco. Se eu bobear ela me pega mesmo. O difícil não é parar de beber: é continuar sóbrio”.Essa é a sina de todos os membros do AA: a vontade permanente de dar o primeiro gole e a consciência do perigo que esse representa para sua recuperação.

9. Fizemos reparações diretas dos danos causados a tais pessoas, sempre que possível, salvo quando fazê-las significasse prejudicá-las, ou a outrem.
10. Continuamos fazendo o inventário pessoal e, quando estávamos errados, nós o admitíamos prontamente.

Companheiro Abroir
No momento em que a coordenadora profere o nome de Abroir inicia um burburinho na sala. Aqueles que estão em sua primeira reunião não entendem o porquê da reação da “platéia”, mas bastam alguns segundos para ser compreensível a todos a razão do fuzuê: Abroir é das figuras mais carismáticas do AA.

O vocabulário que utiliza deixa transparecer a todos a origem simples da qual provém. Os cabelos brancos e a pele negra contornam a bonita pessoa que é.

“Quando eu fui internado eu vi o bicho; eu vi ‘as parede’ rachar. Todo mundo me dizia:’bêbado, gambá e maconheiro tu vai ser até morrer. Tu não tem mais salvação’. Na Pinel eu vi que ali dentro 50% era louco e os outros 50% achava que não era”, fala de maneira expansiva e bem resolvida o Abroir.

O companheiro admite que o momento mais difícil foi também o mais importante para sua recuperação: “quando a gente se dá conta que tem que mudar é ótimo, mas mudar dói mais que qualquer outra coisa”.

“Cheguei aqui chamando urubu de ‘minha loira’. Hoje tá tudo mudado graças a Deus, a vocês e a minha força interior”.

11. Procuramos através da prece e da meditação, melhorar nosso contato consciente com Deus, na forma em que o concebíamos, rogando apenas o conhecimento de Sua vontade em relação a nós e forças para realizar essa vontade.
12. Tendo experimentado um despertar espiritual, graças a estes passos, procuramos transmitir esta mensagem aos alcoólicos e praticar estes princípios em todas as nossas atividades.

Companheiro Norli
Norli é, na verdade, o ideal de recuperação de todos os presentes na sala do grupo Santana e, provavelmente, em todos os outros grupos do AA. Em processo de recuperação há 32 anos Norli está a esse mesmo tempo sem beber o primeiro gole. Está também há 32 anos freqüentando religiosamente as reuniões desse grupo que ele ajudou a fundar.

Norli é prático em seu jeito de falar e diz: “estou aqui por um compromisso moral, me sinto obrigado a contribuir para a recuperação dos meus companheiros uma vez que eu já tive toda a ajuda que precisei”.

Mas o senhor de oitenta anos diz que está ali principalmente para exercitar a cabeça. “Tenho mania de me atualizar em tudo: no AA e nos jornais. Esses dias eu disse pra Preta que a gente é o casal mais bem informado de Porto Alegre – a gente sabe de tudo! Estou aqui por uma questão racional; nada de sentimentalismos baratos”.

O idoso pensante também se mostra bem humorado: “vou terminar com uma anedota para que as pessoas não pensem que a gente só sofre por aqui. A gente chega triste, mas sai feliz por nossas vitórias”.

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