Vargas, asilos e crises de consciência
Samir Oliveira
Dia desses me veio um pensamento inusitado. Tenho uma tia-avó que sofre de alguns distúrbios mentais e está internada num asilo em Porto Alegre. Eni. Não, não é nenhuma onomatopéia desconhecida. É o nome dela mesmo. Eni passou a vida inteira com a mãe, que cuidou dela até o cansaço lhe ceifar a vida, há quatro anos.Pois bem, essa breve contextualização é para dizer que, após dois anos morando na provinciana capital gaúcha, resolvi visitar a tia Eni. O asilo, ou melhor, a “casa de repouso” – odeio esses eufemismos hipócritas – fica na avenida Getúlio Vargas e tem inspiração divina: chama-se Arcanjo São Miguel.Caminhando pela extensa avenida sem lixeiras, deparo-me com um número crescente de pedintes. Mendigos, moradores de rua, limpadores de pára-brisa. Gente que faz da grande avenida com nome de ditador nanico a sua casa. No percurso pelas oito quadras que me separam de São Miguel, peguei-me refletindo sobre a situação daquele lugar. Recheada de pedintes, a Getúlio Vargas remeteu-me ao paradoxal governo do homenageado pela malha asfáltica em questão.É bem verdade que o caudilho gaúcho acabou com a política do café-com-leite e industrializou o país através do sistema de substituição de importações. Mas é inegável o caráter autoritário-populista de seu governo, que cooptou as massas e ditou os rumos do país com mãos de ferro após a implantação do Estado Novo, em 1937. Getúlio trocou uma oligarquia por outra. Ou melhor, outras. Agradando a massa excluída do país, o aclamado “pai dos pobres” conseguiu construir um consenso dócil e favorecer antigos setores do poder, como as oligarquias cafeeiras (vide o torra-torra de grãos realizado na época). Tudo isso, claro, com uma imagem de mudança, de progresso e de desenvolvimento. E o povo? O povo não se importava, afinal de contas já tinham um Ministério do Trabalho e a CLT. Formidável, não?Bueno, tudo isso para dizer que, na promiscuidade daqueles pensamentos, em plena avenida, uma mulher me pede dinheiro. Sentada e escorada no muro de um suntuoso edifício, a mendiga era o retrato mais fiel da realidade brasileira – tanto em 1930, como hoje em dia. Minha mão cavouca, em vão, o bolso vazio. Bem na hora da abordagem, eu estava com um legítimo alfajor uruguaio na mochila. Pronto para ser deliciado. Era o último resquício de uma ida da minha mãe a Riveira. “Bá, não tenho dinheiro”, respondi, certo de que só a carteirinha do TRI habitava meu bolso. “Uma bolachinha?”, suplica a garota. Nesses momentos, a gente deve pensar rápido. Agir primeiro, refletir depois. Num ato instantâneo e quase involuntário, dei a ela o meu alfajor. “Mas tu vai ficá sem”, largou a mendiga. “Tu vai ficá sem”.A grandiosidade da frase me comoveu. No auge de sua agonia, ela ainda se preocupa se eu vou comer ou não. A nobreza, a singeleza e o total carisma daquela mulher me cativaram de tal maneira que fiquei paralisado, com o olhar preso nela e a mente envolta em orgias interpretativas sobre a Era Vargas, o assistencialismo e a mesquinhez da elite brasileira. Só consegui murmurar um “não faz mal”, e continuei meu rumo, ciente da minha inferioridade perante tão altiva postura da marginalizada.Nunca fui um defensor ferrenho do assistencialismo. Tampouco prego o Estado mínimo e a exclusão dos programas sociais, tidos como gastos parasitários por (argh!) Friedrich von Hayek, pai do neoliberalismo. Me vi, então, num debate interno. Fui assistencialista? Contribui com a perpetuação da mendicância no país? Ou apenas ajudei uma pessoa necessitada? Nesse caso, o argumento de “ensinar a pescar, em vez de dar o peixe” não se aplica. Não tinha como eu ensinar a mendiga a fabricar alfajores. Até porque, mesmo que eu soubesse fazer e ela aprendesse, não ficariam iguais aos semidivinos bolachões uruguaios. Enfim, fui para casa com essa pulga na orelha e um alfajor a menos. Mas com duas certezas a mais: de ter aliviado, minimamente, o sofrimento daquela mulher; e de ser totalmente inferior à nobreza de uma excluída da/de Getúlio Vargas.
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